Belmonte debateu o vínculo da palavra com a religião, a geografia, a ficção e a memória

A 2ª edição do “Diáspora – Festival Literário de Belmonte” decorreu entre os dias 20 e 22 de Novembro nessa fria e bela vila com ampla vista sobre a Serra da Estrela. Os dois centros do evento foram o Museu Judaico, onde decorreram as mesas, a entrevista e o encerramento, e a Igreja Matriz, onde - como começa a ser tradição- decorreu a Mesa de Debate com maior pendor religioso.

  • Cultura
  • Publicado: 2015-11-30 12:16
  • Autor: Diario Digital Castelo Branco

A 2ª edição do “Diáspora – Festival Literário de Belmonte” decorreu entre os dias 20 e 22 de Novembro nessa fria e bela vila com ampla vista sobre a Serra da Estrela. Os dois centros do evento foram o Museu Judaico, onde decorreram as mesas, a entrevista e o encerramento, e a Igreja Matriz, onde - como começa a ser tradição- decorreu a Mesa de Debate com maior pendor religioso.

Ficcionistas, políticos, ilustradores, jornalistas e ensaístas debateram o vínculo da palavra com a religião, a geografia, a ficção e a memória, escreve Mário Rufino no Diário Digital. 

Antes da abertura oficial na Igreja Matriz de Belmonte, a ilustradora Catarina Sobral e o contador de histórias Jorge Serafim promoveram a leitura no Agrupamento de Escolas Pedro Álvares Cabral.
A exposição de ilustração de Vasco Gargalo começou antes do dia 20, no Hotel Turismo da Covilhã, e terminará no Ecomuseu do Zêzere, onde vai estar de 1 a 30 de Dezembro.

 

“Se Cristo cá viesse votava no CDS”

O frio nocturno convidava a ficar em casa. Não havia vivalma nas ruas. Antevia-se pouca adesão do público à 1ª Mesa do Festival. Assim não foi. A Igreja Matriz de Belmonte encheu para ouvir Jaime Nogueira Pinto (ensaísta), Nuno Tiago Pinto (jornalista), Pedro Mexia (crítico literário) e Padre Carlos Lourenço (moderador) participar na Mesa intitulada “Em nome de Deus” que, começando às 21:30, terminou já na primeira hora do dia seguinte. Na casa de Deus, com a presença de D. Manuel da Rocha Felício Nascimento (Bispo da Diocese da Guarda), o cristianismo e o islamismo foram debatidos sem censura. Padre Carlos Lourenço afirmou que falar em nome de Deus significa ter a coragem e a capacidade de conhecer, interiorizar e viver as seguintes palavras: “ mansidão, misericórdia, solidariedade, justiça, pureza de coração, promoção de paz, caridade. Tudo o resto são máscaras de Deus. São falsas manifestações de Deus.”
Os participantes foram convidados a debater “os conflitos, as mistificações e a segregação” impostos pela religião e responder à pergunta “como tomou a política conta da religião?”
A filosofia, a história, a política e a teologia estão interligadas ao longo da implementação da religião católica ou do Islão.
Pedro Mexia sublinhou a ligação política ao recordar o lema utilizado pelo CDS na época em que decorria o PREC: “Se Cristo cá viesse votava no CDS”. Segundo Mexia, há muita bibliografia sobre as ligações entre o cristianismo e o comunismo. Também se acredita simultaneamente em Lenine e no Espírito Santo, afirmou.
Segundo Jaime Nogueira Pinto, autor de “O Islão e o Ocidente – a grande discórdia” (D. Quixote), o Islão nasceu sob o signo da espada e da conquista de território, mas tendo uma dimensão de tolerância. Essa tolerância fez com que os muçulmanos preservassem, segundo Pedro Mexia, obras de Aristóteles, com o intuito de conhecer a civilização ocidental em que se inseriam.
As humilhações ao Islão têm vindo a criar grupos radicais que defendem uma interpretação mais dura e menos tolerante do Alcorão, de acordo com Nogueira Pinto. A defesa e propagação dos ideais radicais encontram na internet, segundo Nuno Tiago Pinto, uma ferramenta poderosa. O autor de “Os combatentes portugueses do «Estado Islâmico» ” (Esfera dos Livros) abordou as estratégias de recrutamento dos grupos dedicados ao terrorismo ideológico que têm permitido o acréscimo de combatentes tanto em países-base, como a Síria ou Iraque, mas também em França, Bélgica, Inglaterra e Estados Unidos.
O aceso debate no fim das intervenções da Mesa reforçou a importância da decisão tomada pela Igreja Católica em abrir as portas a opiniões divergentes da sua. Assim foi na 1ª edição, com a presença do Sheik David Munir e de Francisco José Viegas, e assim continuou a ser na 2ªedição.
João Morgado (coordenador do Diáspora), em declarações ao Diário Digital, afirmou que a existência de uma Mesa com tão forte cariz religioso “dá um sinal de abertura e tolerância. Já no ano passado fizemos o debate numa igreja cheia de pessoas de outras religiões que estiveram a discutir, sem qualquer problema, religião numa igreja católica. Este ano o bispo da Guarda fez questão de participar no debate, o que significa que a própria cúpula da Igreja Católica tem interesse em participar e abrir o debate sobre temas da actualidade. É uma linha condutora de Belmonte. Por isso faz sentido o debate aqui, nesta vila” 
O conteúdo religioso justifica-se, pois “Belmonte é uma confluência de religiões que conviveram durante século de uma forma pacífica. Aqui há sempre um debate inter-religioso latente na própria população. Quando quisemos avançar com este festival, entendemos que esta era uma das facetas desta terra e isso nos poderia distinguir dos outros festivais que estão a acontecer em todo o país. 
João Morgado fez questão de sublinhar que o Diáspora não se reduz à religião e ao Livro Divino. O programa abrange outros aspectos culturais inerentes à Literatura. 
O dia seguinte foi preenchido com 2 debates e a “Entrevista de Vida” a Mário Cláudio. Depois da Igreja Católica abrir as suas portas, foi o Museu Judaico a receber o festival no seu auditório.

 

“A circulação de ideias é muito anterior à circulação de bens e de pessoas”

A escritora Andréa Zamorano, natural do Rio de Janeiro, e Inês Pedrosa, escritora portuguesa com obra publicada no Brasil, conversaram, com moderação de Pedro Vieira (Booktailors), sobre “Tanto Mar”, no Museu Judaico de Belmonte. As duas escritoras falaram sobre as suas ligações afectivas e literárias com Portugal e Brasil. E dificilmente poderia ser menos ortodoxo. Enquanto Inês Pedrosa, autora de “Desamparo” (D.Quixote), sonhava com o Brasil e lia os autores brasileiros, Andréa Zamorano sonhava com Portugal e lia os autores portugueses.
A autora de “A Casa das Rosas” (Quetzal) está em Portugal há 23 anos. No seu romance, Andréa Zamorano procurou utilizar os recursos estilísticos aprendidos com a miscigenação cultural e linguística. A narração de “A Casa das Rosas” aproxima-se da estrutura sintáctica e campo lexical do português europeu. No entanto, os diálogos das personagens, que vivem em São Paulo, têm a marca do português do brasil. A miscigenação cultural é uma marca da sua prosa e da sua personalidade. 
Inês Pedrosa interrogou-se, quando escrevia “Desamparo”, como é que misturava na fala da sua protagonista as duas variantes do português.
"No Brasil eu sempre fui a Portuguesa; em Portugal, passei a ser a Brasileira", lê-se em “Desamparo” 
O plano geográfico, cultural e emocional influenciam a produção artística.
Tiago Patrício tem frequentado residências literárias na Escócia, Tunísia, República Checa e nos Estados Unidos. A viagem e o conhecimento de outras culturas reflectem-se na escrita. O escritor nascido no Funchal participou na Mesa com o título “Mercado Comum” na companhia de Maria Manuel Viana, autora do extraordinário “Teoria dos Limites” (Teodolito), e do moderador Pedro Vieira.
Os dois autores presentes foram desafiados a responder a questões como “vivemos num território de livre circulação de capitais, bens e produtos – e a livre circulação de ideias?”
 Maria Manuel Viana afirmou que “a circulação de ideias é muito anterior à circulação de bens e de pessoas” e deu o exemplo de Thomas More, Erasmus e de Petrarca. A autora tem uma ideia diferente de pátria, e referiu Leibniz- autor fulcral na construção de “Teoria dos Limites”. Leibniz sonhou com uma língua neutra, falada por todos os povos, eliminando, desta forma, a maldição babélica presente na Bíblia. A Língua deixaria de corresponder à ideia de território, pois a língua universal é uma língua sem pátria.
Tiago Patrício defendeu as artes plásticas como uma construção com menos limitações do que as línguas. O autor de “Trás-os-Montes” (Prémio Revelação Agustina Bessa-Luís) sente vontade de estar longe do seu país, se possível em lugares onde não entenda o alfabeto, de forma a manter “essa espécie de reserva de espanto”. Após o trabalho de campo feito no estrangeiro, o autor sente a necessidade de voltar a território conhecido. É em sua casa, em Lisboa, que procede ao trabalho mais analítico dos dados recolhidos e da escrita efectuada.

 

“Padre-nosso que estais no Céu, sangue picado seja o Vosso nome…”
 
Mário Cláudio também precisou de distância, mas no seu caso de distância temporal. O autor nascido no Porto tem em “Astronomia” uma visão literária sobre a sua própria vida. E foi através desse livro que Tito Couto, antigo aluno em jornalismo de Mário Cláudio, conduziu a “Entrevista de Vida”.
O autor falou sobre as suas origens judaicas e celtas e de como a sua personalidade é caracterizada pelas dicotomias, pois considera-se católico e herético, convencional e marginal.
Mário Cláudio afirmou que após escrever o livro percebeu que a sua infância não foi tão feliz como pensava. Esse período foi marcado por proibições, pelo conceito de pecado, pela imagem do sangue e a ideia de morte.
A tuberculose dos seus tios não deixou que a família se esquecesse do que poderia acontecer a qualquer momento. O sangue é a marca dessa doença pulmonar.
A agressiva educação católica sublinhou na memória do escritor a imagem do fogo castigador infligido devido aos pecados. Havia muitos pecados e muitos tabus. Uma das proibições era entrar naquela sala fechada com um piano que, na imaginação da criança, tinha o cadáver de um menino da sua família. Mário Cláudio foi criança em época de racionamento. Tudo era aproveitado para não se estragar. Os picados de carne e o sangue da doença estavam tão presentes na vida da criança que ela, ao rezar, frequentemente se equivocava:“Padre-nosso que estais no Céu, sangue picado seja o Vosso nome…”
“Astronomia” abrange a infância, juventude e velhice de – supostamente – Mário Cláudio. O leitor acompanha a inocência, o amadurecimento sexual, o conhecimento sobre o meio literário, a idade adulta e a inevitável anciania.

 

“A Literatura brasileira que mais me interessa é a que explora os meandros e as contradições da cidade”

Na mesa “Há mesmo cidades literárias?”, que contou com a participação do escritor João Paulo Cuenca, da escritora Tânia Ganho e do moderador Tito Couto (Booktailors), a autora afirmou que a escrita de “A Mulher-Casa” (Porto Editora) foi muito influenciada pela cidade onde vivia. No último dia do Diáspora, Tânia Ganho disse que o essencial da acção do livro acontece em Paris. A paisagem narrada e os hábitos demonstrados pela protagonista eram a visão e os rituais da própria autora na capital francesa. 
Tânia Ganho procura estar na cidade que serve para mais do que um contexto à história narrada, pois “as cidades funcionam como um reflexo da vida interior das personagens” 
A necessidade de conhecer o Outro é intrínseca a João Paulo Cuenca. Em São Paulo, cidade onde o escritor vive, ele procura estar junto dos emigrantes e é frequente tomar as suas refeições nos restaurantes colombianos, peruanos, chineses…
“A Literatura brasileira que mais me interessa é a que explora os meandros e as contradições da cidade”, afirmou o escritor nascido no Rio de Janeiro.
A sua experiência de escrita passa sempre por andar pela cidade e a cidade “andar dentro dele”. É um cruzamento. O campo não é uma possibilidade para escrever: “Eu não conseguiria ser um escritor que mora no campo”
Ao contrário de Cuenca e Tânia Ganho, Afonso Cruz escreve numa aldeia alentejana longe das metrópoles. O autor do maravilhoso “Para onde vão os guarda-chuvas” (Companhia das Letras) esteve em Belmonte para inaugurar a exposição “Livro do Ano”. Algumas das ilustrações que fazem parte de “Livro do Ano” (Alfaguara) estão expostas até final de Novembro no Ecomuseu do Zêzere.

 

“A Cultura tem um poder transformador cuja dimensão foi compreendida pelos grandes manipuladores do pensamento”

Gabriela Canavilhas encerrou a 2ª edição de “Diáspora – Festival Literário de Belmonte.
A Ex-Ministra da Cultura sublinhou o conceito renascentista de cultura: A ligação entre matéria e consciência, mente e corpo, terra e céu. Essas dialécticas são, também, uma fórmula bem conseguida de captar a essência do Diáspora. 
A política, a geografia e a religião, tal como foi debatido no festival, actuam nas mentalidades.
A pegada civilizacional deixada em Belmonte pela comunidade judaica é visível e indissociável da vila. E a interacção com comunidades de outras religiões tem sido pacífica e dado fruto. O "Diáspora”, organizado pela Câmara Municipal e pela “Booktailors”, é um exemplo. A cultura é abrangente, interactiva e integradora na vila de Belmonte.
“A cultura tem um poder transformador cuja dimensão foi compreendida pelos grandes manipuladores do pensamento”, afirmou Gabriela Canavilhas. Estaline, Hitler, Mao e radicais religiosos utilizaram-na como instrumento de manipulação.
O local onde nasceu Pedro Álvares Cabral é um exemplo de como a cultura é, essencialmente, um veículo para a tolerância, aprendizagem, formação individual e comunitária.
Durante alguns dias, na Igreja Matriz e no Museu Judaico debateu-se a convivência entre religiões, a geografia como elemento essencial na personalidade e na produção artística, e a necessidade de transmissão de ideias e de culturas entre povos. 
O público que ocorreu ao Diáspora confirmou a pertinência de um festival, com estas características, em Belmonte. O interesse demonstrado prova que, no interior, há vontade de receber vozes que se destacam no panorama cultural português. 

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