O Crime de Tráfico de Pessoas

Atualmente, o art.160º do Código Penal Português tem a seguinte configuração:

  • Opinião
  • Publicado: 2023-07-18 17:12
  • Por: Frederico Mateus Candeias

1 — Quem oferecer, entregar, recrutar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração, incluindo a exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão, a extracção de órgãos ou a exploração de outras actividades criminosas: a) Por meio de violência, rapto ou ameaça grave; b) Através de ardil ou manobra fraudulenta; c) Com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar; d) Aproveitando -se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima; ou e) Mediante a obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a vítima; é punido com pena de prisão de três a dez anos. 2 — A mesma pena é aplicada a quem, por qualquer meio, recrutar, aliciar, transportar, proceder ao alojamento ou acolhimento de menor, ou o entregar, oferecer ou aceitar, para fins de exploração, incluindo a exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão, a extracção de órgãos, a adopção ou a exploração de outras actividades criminosas. 3 — No caso previsto no número anterior, se o agente utilizar qualquer dos meios previstos nas alíneas do n.º 1 ou actuar profissionalmente ou com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de três a doze anos. 4 — As penas previstas nos números anteriores são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a conduta neles referida: a) Tiver colocado em perigo a vida da vítima; b) Tiver sido cometida com especial violência ou tenha causado à vítima danos particularmente graves; c) Tiver sido cometida por um funcionário no exercício das suas funções; d) Tiver sido cometida no quadro de uma associação criminosa; ou e) Tiver como resultado o suicídio da vítima. 5 - Quem, mediante pagamento ou outra contrapartida, oferecer, entregar, solicitar ou aceitar menor, ou obtiver ou prestar consentimento na sua adopção, é punido com pena de prisão de um a cinco anos. 6 - Quem, tendo conhecimento da prática de crime previsto nos n.os 1 e 2, utilizar os serviços ou órgãos da vítima é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 7 - Quem retiver, ocultar, danificar ou destruir documentos de identificação ou de viagem de pessoa vítima de crime previsto nos nºs 1 e 2 é punido com pena de prisão até três anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 8 - O consentimento da vítima dos crimes previstos nos números anteriores não exclui em caso algum a ilicitude do facto.

O crime de tráfico de pessoas coloca em evidência a possibilidade de colocar um preço num ser humano. O que efectivamente ocorre é que o ser humano é utilizado como se de uma máquina se tratasse, servindo apenas para produzir e para dar lucro, isto é, o ser humano passa a ser tratado como um bem móvel. Neste sentido se  defende que o “próprio conceito de tráfico de pessoas evoca este sentido de mercantilização dessas pessoas, reduzidas a objecto, quando lhes é inerente uma dignidade, e nunca, como em relação às coisas, um preço” e que ao ser vítima de tráfico “a pessoa não tem um corpo, é um corpo. E a exploração comercial do seu corpo, não pode deixar de a atingir na sua dignidade de pessoa”. A pessoa é reduzida a uma materialização de si, sendo demitida de tudo o que de imaterial a define. É demitida da própria identidade. Pode concluir-se, portanto, que o que está aqui em causa não é somente a própria liberdade pessoal mas também a dignidade da pessoa humana, sendo a sua violação o que torna este crime particularmente obsceno.

Os meios tipificados no art.160º são a ameaça grave, a violência, o rapto, o ardil, a manobra fraudulenta, o abuso de autoridade, o aproveitamento de incapacidade psíquica, o aproveitamento de situação de especial vulnerabilidade e a obtenção do consentimento da pessoa que detenha o contacto sobre a vítima. O n.º1 alínea a) estabelece a ameaça grave, a violência e o rapto como meios típicos. Entende-se por violência a “intervenção da força física (absoluta ou relativa, consoante elimina ou não, qualquer possibilidade de resistência). Já a conduta inerente ao rapto “pressupõe e exige a transferência da vítima de um lugar para o outro”. A nº1 alínea b) preconiza como meios típicos o “ardil e a manobra fraudulenta”, que, de acordo com as palavras de Paulo Pinto de Albuquerque, trata-se da “acção pela qual o agente engana outrem sobre o significado, o propósito e as consequências da sua acção, não sendo suficiente o mero aproveitamento passivo de engano alheio, não provocado pelo agente” Tal ocorre, por exemplo, nos casos em que as vítimas se deslocam para outro país, convencidas pelo agente criminoso ou por outras pessoas a ele relacionadas, à procura de uma “vida melhor”, aspirando um trabalho digno e obtenção de um bom salário, sendo a realidade que as espera completamente diferente. No que respeita ao meio típico “abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar” previstas na alínea c), entende-se que “não basta uma destas relações de ascendência/dependência, sendo necessário que, na situação concreta, a influência do agente (tendo em conta, entre outras circunstâncias, a intensidade ou grau de superioridade/dependência entre o agente e a vítima, as características psíquicas, mentais, etc., da vítima) constitua um constrangimento ou coação psicológica idónea ou suscetível de levar a vítima a submeter-se à vontade do agente.

Relativamente à expressão “situação de especial vulnerabilidade da vítima” revela-se pertinente afirmar que se trata de um conceito de especial interesse pelo que muito se tem escrito numa tentativa de o densificar, visto que é indeterminado e de árdua interpretação. Não obstante, pode tomar-se como ponto de partida o que foi estabelecido nos trabalhos preparatórios da Convenção de Palermo, onde se determinou que a “situação de especial vulnerabilidade da vítima” consiste em “toda a situação em que a pessoa visada não tenha outra escolha real nem aceitável senão a de submeter-se ao abuso” O elemento subjetivo Os elementos subjetivos do crime em geral referem-se à atitude subjetiva ou psicológica do agente. Em particular, no tráfico de pessoas, o fim ou elemento subjetivo do tipo penal refere-se atualmente à exploração sexual, exploração do trabalho, extração de órgãos, escravidão, mendicidade e exploração de outras actividades criminosas.

De acordo com o art.160º n.º2 do CP, ocorre o crime de tráfico de menores quando alguém “por qualquer meio, recrutar, aliciar, transportar, proceder ao alojamento ou acolhimento de menor, ou o entregar, oferecer ou aceitar, para fins de exploração”. Para este efeito, entende-se como menor a pessoa que tenha menos de 18 anos. Este crime é, quanto aos meios típicos, um crime de execução livre ao contrário do crime de tráfico de adultos que é um crime de execução vinculada, pois a acção (uma das que se encontra legalmente tipificada) tem que obrigatoriamente ser precedida por um dos meios previstos no n.º1. Esta diferenciação que o legislador quis logicamente sublinhar entre tráfico de menores e tráfico de adultos está relacionada com a fragilidade que é inerente aos menores, não sendo portanto exigível que estes tenham de estar condicionados por algum dos meios previstos no n.º1 para que se possa considerar que efectivamente está em causa o crime de tráfico de pessoas. No que concerne às formas de exploração previstas neste n.º2 do art.160º, o legislador penal acrescentou a “adopção” como um dos possíveis fins do tráfico de menores. O n.º3 do art.160º estabelece um agravamento da moldura penal, isto é, o agente será “punido com pena de três a doze anos”, no caso de utilizar algum dos meios previstos no n.º1 do art.160º para proceder ao tráfico de menores ou se “atuar profissionalmente ou com intenção lucrativa”. Quanto à validade desta norma, o anteriormente referido autor “a agravação por causa dos meios utilizados é compreensível, uma vez que também é razoável que, tratando-se de menores não se exija qualquer meio especial para haver o crime de tráfico de pessoas; quanto à agravante “intenção lucrativa” é discutível, uma vez que esta intenção anda quase sempre associada ao crime de tráfico de pessoas (…); a agravante “profissionalidade” justifica-se, mas também deveria funcionar para o tráfico de adultos.  O crime da utilização dos serviços da pessoa traficada ou da utilização do órgão da pessoa traficada Em primeiro lugar, é de referir que a introdução do facto ilícito típico, previsto actualmente no art.160º n.º6, na ordem jurídica portuguesa, se deu na grande reforma legislativa de 2007, pois o legislador teve necessidade de dar cumprimento ao art.19º da Convenção de Varsóvia. Esta norma convencional é uma das mais evidentes formas de combate direto ao crime de tráfico de pessoas através do desincentivo da procura deste tipo de serviços. Olhando o n.º6 do art.160º podemos notar que apenas se pretende penalizar com esta norma aquele que “tendo conhecimento da prática de crime previsto nos n.ºs 1 e 2, utilizar os serviços ou órgãos da vítima”. Logo, fica fora do âmbito de punição desta norma quem utilizar esses serviços com um desconhecimento total da situação. Esta previsão penal vem no sentido do que é pautado pela Convenção de Varsóvia, isto é, que o utilizador dos serviços ou órgãos da vítima tenha conhecimento da prática do crime de tráfico de pessoas.

O Código de Processo Penal ao ser alterado pelo DL n.º 48/2007, de 29 de Agosto, modificou a definição legal de “criminalidade altamente organizada”, plasmada na al. m) do art.1º de modo a prever especificamente o crime de tráfico de pessoas. A inclusão do tráfico de pessoas na definição de criminalidade altamente organizada levou a que pudessem ser aplicadas certas disposições da lei processual a esse crime, nomeadamente, o art.174.º n.º5 alínea a) do CPP relativo à realização de revistas e buscas sem necessidade de autorização por despacho132, o art.177º n.º 2 alínea a) que estabelece a possibilidade de busca domiciliária durante o período noturno, ou seja, entre as 21 horas e as 7 horas133 , o art.187º n.º 2 alínea a) do CPP que prevê a facilitação da possibilidade de escutas telefónicas134 e o art.202º n.º 1 alínea c) do CPP relativo à possibilidade de o juiz impor ao arguido a prisão preventiva135 . Ademais, o CPP prevê ainda no art.88º n.º2 alínea c) a proibição expressa da divulgação da identidade das vítimas do crime de tráfico de pessoas136 e no art.87º n.º3 a exclusão da publicidade, em regra das audiências, dos processos por crime de tráfico de pessoas.

Conclusão, Apesar de o tráfico de seres humanos ser um fenómeno com bastante tempo de história, só recentemente nos finais dos anos 90, despertou a atenção internacional, iniciando-se a determinação de medidas orientadas para a sua prevenção e combate. No que respeita ao panorama internacional, constatou-se no primeiro capítulo da dissertação que existe atualmente uma vasta panóplia de normas definidoras do crime de tráfico de pessoas, nomeadamente, a Convenção de Palermo e o seu protocolo adicional, a Convenção de Varsóvia e a Diretiva 2011/36/UE, que contribuíram para a criminalização do tráfico de pessoas em vários países e para a harmonização das infrações penais. Esta normalização dos conceitos afigurou-se fulcral para o fomento da cooperação internacional que se revela essencial quando está em causa um facto ilícito típico transnacional. Especificamente em Portugal assistiu-se a uma enorme evolução do tipo de crime que foi sendo alvo de sucessivas reformas. Ainda que o crime já estivesse previsto no código penal desde 1982, pode-se afirmar que apenas a partir de 2007 o legislador nacional sentiu uma necessidade mais premente de se ajustar às normas internacionais, produzindo nesse ano mudanças substanciais na abordagem do crime. Pode-se considerar que se deu um aperfeiçoamento legislativo, aquando da mudança do bem jurídico protegido pela norma criminalizadora do tráfico de pessoas que passou a proteger a “liberdade pessoal”, que permitiu o alargamento dos tipos de fins de exploração, abrangendo novos fins que se visam determinantes para uma perceção realista do crime e que deixou de requerer como elemento do tipo a transnacionalidade. Do art.160º do código penal pôde-se concluir que o legislador enunciou detalhadamente as ações em podem consistir o crime de tráfico de pessoas, os meios que podem ser utilizados para consumar o crime e os tipos de exploração possíveis. O legislador penal, agindo de forma acertada, criminalizou o tráfico de menores e mais concretamente este tráfico com o fim da adoção. Outro ponto que merece especial destaque e aplausos é a criminalização da utilização dos serviços prestados pela vítima, dado que esta norma se  traduz numa forma direta de combate ao crime de tráfico de pessoas por via do desincentivo da procura. Relativamente aos expedientes processuais previstos para a aplicação num processo penal por crime de tráfico de pessoas é de ressaltar a norma referente às declarações para memória futura tendo em conta que este procedimento tem-se mostrado decisivo para o aproveitamento da prova testemunhal. No terceiro capítulo pretendeu-se reiterar as dificuldades amplamente referenciadas na doutrina no que diz respeito à complexidade de relações que o tráfico de pessoas estabelece com outros ilícitos criminais, designadamente o lenocínio e o auxílio à imigração ilegal. Entendeu-se que estes ilícitos típicos estão configurados de tal forma que podem acrescentar obstáculos face à identificação correcta das situações de tráfico de pessoas e consequentemente de uma ação mais eficaz por parte do aparelho de justiça. Apesar do número reduzido de condenações que se verificam pelo crime de tráfico de pessoas pode-se sublinhar que as medidas legislativas que têm sido adotadas tiveram um impacto positivo e que o legislador penal português teve a preocupação de se coadunar devidamente às diretrizes internacionais.

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