"Mesmo entre os demónios, existem alguns piores do que outros, e entre muitos homens maus costuma haver algum que é bom."
— Miguel de Cervantes
A citação de Cervantes, embora proveniente de um cenário distante, surge com total pertinência no contexto da sociedade contemporânea. Este ano, comemoramos meio século de liberdade desde a Revolução dos Cravos, que derrubou uma ditadura opressiva e instaurou uma democracia. Este marco histórico serve não só como lembrança dos valores de liberdade e igualdade que moldaram o Portugal moderno, mas também como um mecanismo introspetivo para os desafios que ainda enfrentamos.
Numa época em que as manchetes estão lotadas de notícias sobre conflitos armados, ódios raciais, xenofobia e o crescimento do extremismo de direita, tanto em Portugal como na Europa, as palavras de Cervantes alertam-nos para uma urgência desafiadora. Esta citação, extraída de um contexto literário distante, ilumina com acuidade a complexidade da natureza humana e o espectro moral em que todos nós estamos mergulhados.
Assistimos a uma escalada preocupante de tensões que se manifestam através de várias formas de violência e discriminação. Na Europa, partidos e movimentos de extrema-direita ganham terreno, alimentados por uma retórica que muitas vezes vilipendia o outro, seja ele; imigrante, refugiado ou simplesmente alguém que difere pela cultura, religião ou cor da pele. Portugal, apesar de muitas vezes percebido como um bastião de tolerância, empatia no acolhimento e segurança, não está imune a estas ondas de intolerância e xenofobia.
A história ensinou-nos que os movimentos extremistas, na maioria das vezes, começam e crescem nas fissuras deixadas por desigualdades económicas, sociais e políticas. Assim, uma resposta eficaz ao extremismo não pode apenas focar-se em medidas de segurança, jurídicas ou legislativas, deve também abordar as raízes profundas do descontentamento que alimenta tais ideologias. A educação, a integração social e a justiça económica, são fundamentais para curar as divisões e construir uma sociedade mais coesa, consciente e socialmente resiliente.
Hoje, a Europa e, por consequência, Portugal, encontram-se numa encruzilhada, enfrentando o ressurgimento de ideologias que pareciam termos deixado para trás. O extremismo de direita, a xenofobia e os ódios raciais são sintomas de uma sociedade que ainda luta para afinar a diversidade com a coesão. Estas não são meras reminiscências de um passado distante, mas sim realidades vivas que continuam a moldar o diálogo público e a política.
Refletindo sobre as palavras de Cervantes, devemos tentar encontrar o bem, mesmo nos lugares mais sombrios. Isto significa, procurar o potencial que todos temos para a empatia, num exercício genuíno de tentar entender todas as facetas da condição humana. Enquanto lutamos contra as manifestações de ódio e extremismo, devemos esforçar-nos para reconhecer e apoiar aqueles que, mesmo apedrejados por esses grupos hostis, se esforçam para promover a paz e a compreensão, sem ceder aos fenómenos de respostas pelo mesmo padrão.
A celebração dos 50 anos da Revolução dos Cravos é uma oportunidade para reafirmar os compromissos com a democracia, a liberdade e a igualdade. Deve também ser um momento para refletir sobre como esses valores podem ser expandidos e verdadeiramente inclusivos, combatendo as tendências que ameaçam fragmentar a solidariedade europeia. Enquanto honramos os heróis do passado e celebramos os marcos de liberdade, devemos também olhar para o futuro com uma determinação renovada de enfrentar e superar os males modernos de xenofobia, racismo e extremismo político.
A efeméride do 25 de Abril, neste contexto, torna-se não só uma celebração, mas também um urgente lembrete da vigilância necessária para preservar os valores que este dia simboliza. A liberdade conquistada em 1974 foi um marco na luta contra a opressão, mas a batalha contra as formas contemporâneas de exclusão e intolerância permanece inacabada.
Há, portanto, um novo Abril a ser conquistado; o Abril da liberdade que, a partir do respeito, nutre a compreensão e fomenta a tolerância, criando um espaço onde todos têm lugar e onde essa tolerância retroalimenta a liberdade.
Viva Portugal de todos e para todos, viva a liberdade feita de um Abril permanente.
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