Entre fogos e cheias: a degradação dos ciclos da água do planeta

O verão em Portugal, e em várias partes da Europa, tem sido marcado por incêndios devastadores. As chamas, alimentadas por verões cada vez mais secos e longos, consomem hectares de floresta, ameaçam vidas, destroem ecossistemas e colocam em risco infraestruturas essenciais.

  • Opinião
  • Publicado: 2024-09-22 15:39
  • Por: Antero Carvalho

No entanto, o cenário de devastação não termina quando as chamas são extintas. O ciclo climático, profundamente alterado pela ação humana, prepara um novo golpe – os invernos de cheias, tempestades extremas e deslizamentos de terra.

As alterações climáticas, ao desregular os ciclos naturais, têm transformado os padrões de precipitação e agravado a intensidade dos fenómenos meteorológicos. A Europa está a viver esses desafios: os verões são cada vez mais secos e os invernos, mais severos e chuvosos.

Para entender melhor este fenómeno, basta considerarmos como a capacidade da atmosfera em reter vapor de água aumenta com o aquecimento global. A cada grau que o planeta aquece, a atmosfera pode armazenar cerca de 7% mais vapor de água. Essa maior retenção leva a chuvas mais intensas e localizadas, especialmente nas regiões já vulneráveis, como as bacias hidrográficas do sul da Europa. Assim, o que vemos hoje não é apenas a previsão de um cenário futuro, mas uma realidade presente, com inundações, perda de culturas agrícolas e infraestruturas ineficazes para suportar a nova ordem climática.

A degradação dos ciclos da água não é apenas uma consequência isolada; ela revela a inter-relação dos sistemas naturais. As florestas, muitas vezes vistas apenas como sumidouros de carbono, são elementos-chave na regulação da água. Estas, por exemplo, criam "rios voadores" que influenciam padrões de precipitação em regiões distantes. A sua destruição, compromete a capacidade do planeta de reter e distribuir água de forma equilibrada. O resultado? Invernos mais rigorosos e verões sufocantes, num ciclo de extremos que alimenta, por sua vez, o aumento dos incêndios e os fenómenos de cheias devastadoras.

A nossa capacidade de resposta a esta nova realidade deve ir além do combate aos incêndios e das medidas de contenção das cheias. A adaptação exige uma transformação profunda da forma como gerimos os nossos recursos naturais. É urgente repensar a gestão das águas, construir infraestruturas resilientes, restaurar os ecossistemas e rever o ordenamento do território. Precisamos de florestas mais saudáveis que ajudem a captar e a regular a humidade no solo, e de cidades preparadas para a drenagem e gestão de água em períodos de chuva intensa.

As alterações climáticas são uma realidade com a qual convivemos. A cada ano que passa, o preço da inação torna-se mais elevado. Os eventos extremos de hoje – seja o calor abrasador dos incêndios ou as inundações descontroladas do inverno – são um sinal claro de que os ciclos da natureza estão profundamente perturbados. A engenharia sofisticada da natureza, aquela que sustenta a vida na Terra, está a ser desmantelada pelas nossas próprias mãos.

Ao contrário da tecnologia humana, que tenta replicar a eficiência dos processos naturais, a verdadeira solução para mitigar os impactos das alterações climáticas reside em respeitar e restaurar os ciclos naturais. O que fazemos às florestas, aos oceanos e à atmosfera não se reflete apenas na quantidade de dióxido de carbono no ar. Afeta diretamente a forma como a água circula pelo planeta, definindo o que será a nova normalidade climática – uma normalidade de extremos.

Portugal, como muitos outros países europeus, encontra-se numa encruzilhada. Temos o conhecimento, os dados científicos e as ferramentas tecnológicas para reverter, ou pelo menos mitigar, a crise climática. No entanto, continuar a tratar o planeta como um recurso ilimitado, ignorando que a sua capacidade natural de autorregulação está a ser ultrapassada, coloca-nos em risco de perder aquilo que realmente importa: a extraordinária capacidade da Terra de sustentar a vida tal como a conhecemos.

Os fogos são apenas a face mais visível da crise ambiental, mas é no descontrolo dos ciclos da água que encontramos o verdadeiro perigo. As cheias virão, e com elas uma realidade que, se não for enfrentada urgentemente, comprometerá o futuro de todos. Sem uma ação urgente e coordenada, o nosso presente será marcado por uma sucessão de tragédias anunciadas, onde o verão trará o terror dos incêndios e o inverno as águas implacáveis.

É tempo de percebermos que as alterações climáticas não são um problema do amanhã, mas do agora. Cada atraso na implementação de medidas robustas de mitigação e adaptação significa mais vidas em risco, mais infraestruturas destruídas e mais comunidades devastadas. Não podemos continuar a ignorar os sinais de um planeta em desequilíbrio. Se não agirmos já, o custo será irreparável, e o que está em jogo é a nossa própria sobrevivência.

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