O artigo de Pugach (1992) surgiu como um despertar para com a temática da socialização dos professores de Educação Especial, considerando que a autora denomina este campo de estudo como um “território inexplorado”.
Em primeiro lugar, estes professores não possuem uma aprendizagem prévia por observação para trabalharem na Educação Especial, nem se conhecem as suas conceções anteriores sobre o que é ensinar crianças com Necessidades Educativas Especiais (NEE). Em segundo lugar, a preparação dos professores de Educação Especial depende de um conhecimento técnico específico, que se afasta da cultura de partilha do saber profissional implícito nas práticas dos professores de outras áreas curriculares. Para além de possuírem conhecimentos sobre legislação e as formas para aceder a determinados serviços ao dispor dos alunos com diversidade funcional, as metodologias de ensino que utilizam, embora não sejam generalizáveis, apresentam, na sua opinião, um cariz limitado, diretivo e behaviorista. Neste sentido, a socialização dos professores de Educação Especial requer uma mudança nos programas de formação para a docência, considerados substancialmente conservadores, de forma a adquirirem uma perspetiva mais ampla sobre o ensino e a aprendizagem, entendida como um requisito necessário para fazerem parte de um discurso coletivo, baseado no questionamento e na reflexão sobre a prática profissional. Em terceiro lugar, o trabalho dos professores de Educação Especial abrange diferentes contextos educativos, como são as escolas especiais e as escolas do ensino regular, aspeto que coloca a possibilidade de uma dupla socialização destes professores. O dilema é mais acentuado quando os professores de Educação Especial iniciam as suas carreiras profissionais sem terem um referencial claro, relativamente aos modelos/mentores que os podem influenciar: os colegas mais experientes de Educação Especial ou os professores do ensino regular. Assim, os professores de Educação Especial encontram-se numa posição de isolamento, só quebrável através de uma maior frequência de interações com os seus pares do ensino regular. Em última análise, a instituição-escola é a força predominante na socialização dos professores de Educação Especial. Mesmo num contexto de mudança para o paradigma educativo da Educação Inclusiva, estes professores continuam a possuir uma forte (auto)identidade e cultura profissional própria, mas que continua a não ser compatível com um sentido de colegialidade da classe docente (Purgach, 1992).
No estudo de Matos (2011) foram identificados como componentes influenciadoras da identidade profissional dos professores de Educação Especial: a necessidade de uma reconfiguração dos seus percursos docentes, já que a Educação Especial surge como uma “saída” face a um possível cenário de desemprego por falta de colocação nos grupos de recrutamento a que estão vinculados pela sua formação inicial; o desencanto com a progressão na carreira; o desprestígio social da classe docente em Portugal; o aumento das solicitações burocráticas; a inadequação da formação inicial para dar uma resposta eficaz aos alunos com diversidade funcional; o desconforto na relação com os seus pares por falta de sentido de colaboração; a submissão legislativa ao poder central; a falta de apoio das direções executivas e finalmente; a escassez de tempo para estarem com as suas famílias. Portanto, os professores de Educação Especial têm uma identidade profissional específica, com valores e comportamentos, que variam no tipo de relações que estabelecem com os alunos, com os colegas de profissão e com as famílias. Estes docentes dão importância às emoções e à formação contínua, face às lacunas criadas por uma formação inicial e especializada insuficiente, para responder ao paradigma da Educação Inclusiva. O sentido dado à pertinência da mudança educativa, da reflexão permanente sobre as práticas e a construção de novos rumos na profissão, são elementos que unem os professores de Educação Especial.
No trabalho de investigação de Madureira (2012) a cultura organizacional das escolas representa uma dimensão determinante na socialização dos professores de Educação Especial. Contudo, a legislação veio desencadear reações e repercussões negativas nas práticas dos professores. A reconfiguração identitária dos docentes em estudo surgiu através de várias influências (pessoais, profissionais e contextuais), que provocaram uma mudança ao nível das suas conceções, atitudes e práticas profissionais junto dos alunos com NEE. Madureira (2012) identificou três tipos de identidades profissionais através de narrativas autobiográficas redigidas pelos participantes e de entrevistas, ou seja, a identidade pedagógica resiliente, a identidade plural vulnerável e a identidade ambígua vulnerável. No que respeita à identidade pedagógica resiliente os professores de Educação Especial demonstraram uma mudança em termos de conceções, atitudes e práticas, evidenciando maior cuidado perante a aprendizagem dos alunos que apoiam, graças à utilização de metodologias proactivas, à elevada resiliência pessoal e à frequência de formação contínua. São profissionais eticamente empenhados na persecução dos valores da Educação Inclusiva através de um ensino diferenciado perante as necessidades de cada aluno. Quanto aos professores que apresentam uma identidade plural vulnerável, embora apresentem características semelhantes aos professores que evidenciam uma identidade pedagógica resiliente ao nível das atitudes, práticas, conceções educativas e um desempenho profissional voltado para o sucesso dos alunos. No entanto, perante situações de apoio a alunos com problemáticas mais graves, demonstram sentimentos de incapacidade, frustração e desejo de abandono da Educação Especial. Estes docentes deambulam entre várias funções (ensino regular ou apoio educativo), sem se assumirem, propriamente, como professores de Educação Especial e o cumprimento das responsabilidades que lhe são inerentes pela legislação. Por fim, os professores que apresentam uma identidade ambígua vulnerável revelam um compromisso significativo nas dimensões enunciadas anteriormente e no que se refere à importância da escola e do trabalho dos professores no desenvolvimento integral dos alunos, procurando a formação contínua como forma de encontrarem respostas que melhorem a eficácia da sua intervenção educativa. Porém, este tipo de professores demonstram ambiguidade na motivação para com a profissão e nas escolhas que fazem durante a carreira, necessitando de investir constantemente em relações que lhe proporcionem alguma segurança profissional e emocional no local de trabalho. A vulnerabilidade apresentada é o resultado das contantes alterações legislativas, que influenciam as suas funções no apoio especializado a determinadas tipologias das NEE, conduzindo o seu desenvolvimento profissional à saturação. A pressão das políticas educativas, a constante mudança da cultural organizacional das escolas e a multiplicidade de funções a que estão sujeitos, são os fatores que determinam a socialização dos professores de Educação Especial estudados (Madureira, 2012).
O estudo de doutoramento de Wilt (2013) procurou abordar a formação da identidade dos professores de Educação Especial que trabalham com crianças com Perturbação do Espetro do Autismo (PEA), tendo por referência as experiências pedagógicas que ocorrem dentro e fora da sala de aula, as transformações verificadas no seu desenvolvimento profissional longo das carreiras e as características que os distinguem de outros professores. A autora identificou semelhanças na escolha da profissão devido a motivações familiares, nos percursos académicos individuais; nos sentimentos e atitudes perante os alunos com problemas de aprendizagem ou de comportamento; nos níveis de envolvimento na profissão (planificação, preparação de materiais específicos, diálogo com as famílias e no apoio aos alunos). As experiências e acontecimentos da vida pessoal dos professores e as etapas mais positivas das suas carreiras assumiram um posição determinante na criação e transformação das suas identidades profissionais. Wilt (2013) aponta para a necessidade das instituições universitárias incluírem a participação de professores de Educação Especial com larga experiência no ensino de crianças com Autismo na formação dos professores de Educação Especial, através da partilha e reflexão sobre experiências e saberes profissionais com os “mais novos”, para que estes possam ultrapassar as possíveis dificuldades sentidas no apoio aos alunos e conseguirem elevar o seu sentido de envolvimento e dedicação à profissão. A socialização realizada de forma interativa entre os professores participantes no seu estudo, permitiu influenciar e até alterar as suas perceções do que é ensinar alunos com PEA e sobre eles mesmos, enquanto professores de Educação Especial. A comunicação estabelecida entre os professores na partilha das suas experiências de vida pessoal e profissional, reforçou o princípio de que a socialização é uma dimensão essencial na formação das suas identidades profissionais. Wilt (2013) reparou que os professores de Educação Especial referem-se a si mesmos como “nós” e os professores de outras disciplinas são apelidados de “eles”. Este aspeto funciona como uma forma de diferenciação e de identificação de um grupo específico de professores dentro da classe docente, justificada pelo argumento de que os professores do ensino regular não conhecem, nem entendem o tipo de trabalho realizado pelos professores de Educação Especial. Estes são olhados pelos seus pares com uma espécie de sentimento associado a pena, tristeza ou compaixão, porque trabalham com crianças ou jovens com limitações funcionais muito significativas (Autismo) e para eles é sinónimo de sofrimento. Contrariamente a esta visão pessimista, os professores de Educação Especial participantes neste estudo revelaram um elevado grau de satisfação, comprometimento e dedicação à docência. Esta marca de gratificação profissional é referida por Souza e Silva (2020), referindo-se ao estudo de Linhares (2016), quando salientam que “ há uma evidente vinculação entre o ser professor de Educação Especial e trabalho que esse profissional realiza, marcada pela influência nas fases de desenvolvimento dos alunos e alunas” (p.17).
Esta problemática é relançada por Costa (2018), ao referir que os professores de Educação Especial participantes na sua investigação de doutoramento demonstraram, através das suas práticas educativas, disponibilidade para colaborarem com os professores dos alunos que apoiam em contexto de sala de aula, na partilha de conhecimentos técnicos/legislativos ou pedagógicos, de forma a modificarem os ambientes e dinâmicas de ensino e aprendizagem dos alunos com NEE. Porém, os professores do ensino regular posicionam-se como figuras principais neste processo, não reconhecendo os professores de Educação Especial como seus pares, nem o valor e o seu papel no sucesso educativo destes alunos, contrariando o princípio da cooperação entre docentes, entendido como essencial no paradigma da Educação Inclusiva.
No artigo de Inostroza (2020) sobre a construção da identidade das professoras de Educação Especial no contexto das políticas de prestação de contas (accountability) implementadas no sistema educativo do Chile, deparamo-nos com um cenário de tensões e constantes transformações no profissionalismo destas docentes, decorrentes de exigências políticas que conduzem a práticas de ensino estandardizadas, à exclusão dos alunos através da homogeneização das suas necessidades de aprendizagem, inerentes às lógicas do mercado educativo, contrariando o paradigma da Educação Inclusiva e a forma como historicamente os docentes chilenos constroem as suas identidades profissionais. As narrativas biográficas das professoras de Educação Especial estudadas apontam para um identidade profissional fragmentada, pois são responsabilizadas, exclusivamente, pela inclusão educativa dos alunos com necessidades educativas especiais nas escolas. Na análise dos resultados do estudo o autor constata que não existe um envolvimento direto e uma cultura colaborativa dos professores do ensino regular (que vêm o seu poder ameaçado com a presença das professores de Educação Especial nas suas salas), dos diretores das escolas ou até das entidades estatais que exigem resultados que comprovem a existência de uma inclusão (estatística) no sistema educativo. As funções profissionais das professores de Educação Especial ultrapassam claramente as dimensões didáticas e pedagógicas, já que lhes é exigida, para além da sobrecarga burocrática e produção de evidências do seu trabalho, como acontece em Portugal, que estas desempenhem papéis atribuídos às famílias (cuidar da roupa, da higiene e da alimentação dos alunos), esmagadoramente provenientes de meios socioeconómicos desfavorecidos. Para ilustrar a uniformidade das narrativas destas professoras de Educação Especial chilenas, Inostroza (2020) recorre à chamada “identidade apostólica”, atribuída por Núñez (2004), aos professores que assumem a profissão como uma missão quase religiosa e vivem intensamente a educação e as vidas dos seus alunos.
Através dos estudos apresentados, percebemos que a socialização dos professores de Educação Especial e a construção das suas identidades profissionais é fruto de processos complexos de envolvimento constante e das experiências, interações, influências e do crescimento pessoal e profissional destes professores. A mudança para Educação Especial após a formação inicial é identificada no estudo de Costa (2018), pelas mesmas razões percecionadas nas investigações de Matos (2011), Madureira (2012), ou seja, alguns procuram estabilidade profissional (entrada nos quadros das escolas, facilidade de colocação ou aproximação à residência), enquanto outros seguem o percurso da Educação Especial porque têm familiares com limitações funcionais severas. Por fim, surge o sentido de vocação ou de missão em “salvar” os alunos com NEE. O estudo de Wilt (2013) salienta um dado que ainda se verifica na maioria das investigações sobre a condição docente nos Estados Unidos da América, nomeadamente, o abandono da profissão nos primeiros anos de docência. No caso dos professores de Educação Especial as razões para a saída da profissão, prendem-se com as condições de trabalho, as questões pessoais, a falta de apoio dos colegas ou das lideranças das escolas ou no caso da permanência, o desejo de mudar para o ensino regular. A investigação de Inostroza (2020), entre muitos outros aspetos, vem colocar em evidência o efeito nefasto de políticas educativas contraditórias, sustentadas por lógicas neoliberais e modas transitórias, que afetam as identidades profissionais dos professores em geral e de Educação Especial em particular, sobretudo, quando estes são meros figurantes ou proletários na aplicação de normativos criados em abstrato, mas que afetam as suas vidas e as dos alunos.
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