"A vida do homem na terra é combate,
e lutar antes de tudo consigo mesmo»
Miguel de Unamuno
O intelectual do paradoxo por excelência, Miguel de Unamuno, procurou compreender o "homem de carne e osso", longe das frias e distantes abstrações, esse ser que se caracteriza por lutar por algo. Esses desejos típicos de nossa condição estritamente carnal podem ser resumidos e condensados em um único desejo sublime, angustiante e necessário: não morrer.
Em ocasiões anteriores mencionamos o vínculo intrínseco do ser-para-morte proposto por Heidegger e fizemos algumas associações com a proposta interpretativa que o grande Unamuno nos legou sobre o apego que temos de não querer deixar de ser o que somos, nunca . Como certa vez argumentou o filósofo Fernando Savater, não há dúvida de que nosso autor de referência foi "o amigo da imortalidade" e, consequentemente, "o inimigo determinado da morte", usando a expressão que o pensador búlgaro Elías Canetti (1905-1994) que se esforçou para tentar tirar todo o crédito possível, expondo seu lado mais sombrio do "mal" absoluto e opondo-se a ele com um amor incondicional pela vitalidade de tudo o que existe em nosso mundo.
Mas, que morte nega o nosso basco? Sem dúvida, não se trata apenas da cessação física de nossa existência, mas de algo ainda mais enraizado e complementar expresso no mais belo capricho existencialista que pode ser expresso: "Peço não morrer, quero viver sendo eu, assim como sou, para sempre". Talvez, queridos leitores, vocês não tenham pensado nisso de maneira semelhante em algum momento de suas vidas? Acontece que Unamuno consegue subverter um ato de arrogância e exigências sobrenaturais no traço mais carnal e característico do homem real: dificilmente alguém quer deixar de existir como é.
Unamuno argumentou que a vida é, em certo sentido, a agonia resultante de uma luta constante entre razão e sentimento, expondo um trágico problema filosófico de conciliar necessidades racionais com afetivas. Dada a falta de uma âncora de sentido, nosso autor recomendou, diante da exaustiva finitude do corpo, a crença em algum tipo de transcendência de nossa passagem terrena: o desejo pela existência de uma divindade ou imortalidade seria mais devido a uma fé inalienável como afirmação do crente. Como podemos ver, fé e razão nessa abordagem não se opõem nem se contradizem, justamente porque quando filosofamos o que estamos tentando fazer é nos justificar em nossa existência conflituosa que nos constitui como o que somos: uma relação agonizante entre o indivíduo e a comunidade, entre alma e razão, entre o intelectual e o sentimental.
A matéria-prima de qualquer pessoa que se queira dignar um dia a filosofar é, segundo o nosso autor, a realidade do eu, de nós próprios, expressa no motor vital de não querer morrer, que longe de ser um desejo fantasioso está estritamente associado com origem de um sentimento trágico compartilhado por quase todos os mortais, a saber, o "apetite pela divindade".
Agora, (e aqui as coisas dão errado) precisamos urgentemente nos perguntar o seguinte: o que acontece com aqueles que decidem abandonar voluntária e tragicamente sua existência? Aparentemente, esse “querer ser sempre eu” não acontece com todos os mortais. Além disso, para muitos a "insustentável leveza do ser" (Milan Kundera) torna-se insuportável a ponto de a afinidade com o abismo do nada ser mais atraente do que o belo capricho existencialista mencionado acima. Entramos na areia movediça do desejo de deixar de existir. Unamuno conseguiu expor esse sentimento inescrutável em algumas de suas histórias, referindo-se ao motor dessa ação como a ânsia de voltar ao útero em busca de um pai que partiu cedo demais.
Mas vamos mais longe. Deixaremos de lado os casos em que as pessoas sofrem uma agonia excruciante em decorrência de uma condição patológica que literalmente lhe tira a vontade de viver, ou também os contextos de extrema vulnerabilidade psíquica em decorrência de uma vida assolada pela violência, abuso e injustiça. Focaremos especificamente no que pode acontecer com o ser humano a quem chamamos de "um", "mais um", "um como eu", a quem aparentemente nenhuma das anteriores lhe estaria afligindo e a quem, processual ou subitamente, Ele literalmente desliga o interruptor.
Redenção lógica diante de uma existência absolutamente absurda e ilógica (Camus); um ato prudente de bravura por aqueles homens cuja vida se tornou um fardo extremamente pesado (Hume); uma demonstração de covardia de quem ama a vida, mas não aceita suas condições de existência (Schopenhauer); uma forma elegante de se aposentar "na hora", tentando evitar a decadência, a velhice, a vergonhosa decrepitude do corpo e da mente (Nietzsche); uma decisão conscientemente planejada, impulsionada por uma idealização exacerbada das influências sociais sobre o sujeito (Durkhein), etc. Abundam as definições, interpretações e teorizações, e nem todas coincidem no mesmo aspecto. A verdade é que apesar de nos ter acompanhado em todas as fases da nossa história, o suicídio é, até hoje, um fenómeno desconcertante, misterioso, extremamente doloroso e, de certa forma para muitos, muito difícil de compreender.
Não se pretende que esta seja uma investigação acadêmica que possa desenvolver plenamente o tema, como ele realmente merece. Essas letras são motivadas pela necessidade de nos convidar a pensar, individual e coletivamente, sobre um fenômeno que rompe por completo a "normalidade" e que produz uma dor irremediável em quem permanece na expectativa diante do abismo do nonsense que prolifera de tal ação. A violência e a agressividade não só para consigo mesmo por parte de quem o faz, mas também para com quem se depara com a cena confunde completamente qualquer tentativa de interpretação que busque a compreensão: uma mensagem fica estabelecida, de uma forma ou de outra, às vezes explícita, às vezes sutilmente sugerida que nos coloca em um estado de fragilidade tal que nos confronta com o irremediável e a mais crua das possibilidades de existência.
Como siempre hemos sostenido en nuestras líneas, es preciso hacer hincapié que la libertad no es un efímero ideal comercial que se consigue mediante la adquisición de ningún bien ni servicio, sino mediante la práctica constante, habitual y permanente de la reflexión y el ejercicio pleno del pensamento critico. O abandono voluntário do pensamento nos dessensibilizou a um ponto patético, em que não nos sentimos parte de nada nem de ninguém ao mesmo tempo em que acreditamos que todos têm que estar por perto para vir até nós. Pois não. Fazer parte de uma comunidade pensante implica também saber ouvir e saber pedir ajuda sem qualquer pudor, rompendo com a lógica individualista que nos impele a viver segundo o falso imperativo de que cada um se salva por si e só por si e apenas meios. Se há algo que nos é claro, diante de tamanha incerteza que o suicídio produz, é que talvez não seja possível evitá-lo em casos específicos em que o sujeito não encontra nenhuma possibilidade racional de se apegar a algo que o detenha. dele.
O que sim, e disso estamos convencidos, é fundamental atentar para os sintomas de autodestruição permanentemente promovidos por agendas comerciais que conseguiram subverter o sentido da proposta de Unamuno, transformando-a em total desrespeito ao interesse de conhecer e amar a si mesmo, o mesmo para fazer parte de uma massa amorfa de consumidores que, longe de apreciar sua identidade e desejar sua eternidade, buscam a notoriedade virtual a qualquer preço. Talvez, e esta é apenas uma hipótese simples, se conseguirmos educar e formar nossos jovens em um modelo educacional abrangente que tenha como núcleo a autonomia por meio do pensamento crítico, da avaliação respeitosa e consistente da diversidade e da construção de uma comunidade naquele que ninguém é supérfluo, só assim, talvez, possamos iniciar um caminho que aponte para a dignidade oferecida pela percepção de uma existência que, apesar de todos os seus altos e baixos, sempre vale a pena ser vivida.
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