Um tema que tem especial acuidade no crime de violência doméstica é o do concurso de crimes, o qual é fundamental para a determinação das consequências jurídicas do crime, ou seja, para a punição do agente.
A nossa lei penal – artigo 30º, n.º 1, CP, que preceitua “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente” – seguiu a primeira via, o que significa que no ordenamento jurídico-penal português ou existe um concurso efetivo ou há uma unidade do facto punível e, portanto, de crime.
O crime de violência doméstica pode materializar-se numa multiplicidade de comportamentos e, se é certo, que alguns não constituem, em si mesmos, delitos penais, é, também, correto que a grande maioria se traduz em crimes contra a integridade física, contra a liberdade pessoal, contra a liberdade sexual, contra a honra, contra a reserva da vida privada. E, nestes casos, muito frequentes, entre o crime de violência doméstica e os crimes de ofensa à integridade física simples (artigo 143.º) ou qualificada (artigos 145.º, n.º 1, al. a)), ameaça simples (artigo 153.º) ou agravada (artigo 155.º, n.º 1, al. a)), coação simples (artigo 154.º) ou agravada (artigo 155.º, n.º 1, al. a)), sequestro simples (artigo 158.º, n.º 1), coação sexual/assédio (163.º, n.º 2), fraude sexual (artigo 167.º), lenocínio (artigo 169.º, n.º 1), importunação sexual (artigo 170º), difamação (artigo 180º) e injúria (artigo 181.º), a maioria dos autores9 , e a jurisprudência10 consideram que estamos perante um concurso “aparente”, em que o agente é apenas punido pelo crime de violência doméstica.
Entendo, igualmente, que se verifica um concurso “aparente” entre o crime de violência doméstica e os crimes de perseguição (artigo 154.º-A), violação de domicílio ou perturbação da vida privada (artigo 190º), introdução em lugar vedado ao público (artigo 191.º), devassa da vida privada (artigo 192.º), violação de correspondência ou de telecomunicações (artigo 194.º) e gravações e fotografias ilícitas (artigo 199.º), uma vez que todos eles são suscetíveis de constituir violência psicológica e colocar em perigo a saúde psíquica da vítima.
É incompreensível que, constando da exposição de motivos do Anteprojeto da Revisão do Código Penal que esta procura “o reforço da tutela de pessoas particularmente indefesas, como as crianças, os menores e as vítimas de violência doméstica”, o legislador tenha mantido, agora de forma expressa e absoluta, a regra da subsidiariedade, que não só não reforça a tutela das vítimas, como a enfraquece de forma acentuada. Assim, numa situação em que a violência doméstica se tenha concretizado num sequestro ou numa violação, crimes puníveis com pena de prisão de dois a dez anos (artigo 158.º, n.º 2) e de três a dez anos (artigo 164.º, n.º 1), respetivamente, apenas será aplicada ao agente esta pena, esquecendo-se, por completo, a existência da especial relação entre o agente e a vítima. É, precisamente, esta relação conjugal ou análoga, presente ou pretérita, que constitui o fundamento da criação do crime de violência doméstica, da gravidade da sua ilicitude e da culpa.
E, assim sendo, vamos recorrer ao Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de dezembro de 2016, proferido no processo n.º 1150/14.1GAMAI.P1, para ilustrar o raciocínio exposto. Na parte que releva para o objeto presente de estudo, temos que o Tribunal Superior revogou a sentença da 1.ª Instância na parte em que condenou o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, al. a) e 2, do Código Penal, por entender que a interrupção temporal dos atos criminosos no período compreendido entre 2004 a 2014, não permite afirmar que à conduta do arguido presidiu uma unidade resolutiva, ou seja, a interrupção da atuação do arguido pelo período de onze anos e a renovação do seu desígnio em 2014, não autoriza que se considere ter ocorrido um único crime de violência doméstica. E, desta forma, teríamos, de acordo com o entendimento do Tribunal, um crime de maus-tratos, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, al. a) e 2, do Código Penal, consumado em 2004, em concurso efetivo com um crime de injúria e um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 182.º, n.º 1, 153.º e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, consumados em setembro de 2014.
Focando-nos naquilo que estamos a analisar e de acordo com a matéria de facto provada, o comportamento global do arguido preenche mais que um tipo legal concretamente aplicável, importando apurar se existe uma “conexão objetiva e/ou subjetiva” que permita concluir que um daqueles sentidos de ilícito aparece como dominante.
No caso concreto, o resultado a que chegamos com recurso a critérios de indiciação foi idêntico ao alcançado pelo Tribunal da Relação do Porto por apelo a critérios de definição, mas daqui não é legítimo extrapolar que em todas as situações tal ocorre. O que se explanou é válido para o concurso efetivo homogéneo, sendo que, no caso analisado, bastava considerar que os factos ocorridos em 2014, enquanto manifestações de violência psicológica (injúrias, privação de serviços de primeira necessidade e ameaças), eram aptos a lesionar o bem jurídico saúde para estarmos perante um concurso efetivo entre dois crimes de violência doméstica ou, mais correto, entre um crime de maus-tratos e um crime de violência doméstica.
Não foi esta a opção do legislador, conforme resulta do estatuído no artigo 152.º do Código Penal. O legislador pretendeu punir, como crime de violência doméstica, factos que não são punidos em outros tipos legais, factos que são punidos em tipos legais com penas mais leves e factos que são punidos em tipos legais com penas mais graves. E, quanto a estes últimos, tal resulta da consagração legislativa da regra da subsidiariedade expressa geral constante da parte final do n.º 1 do preceito em análise. A consagração desta categoria de unidade de norma foi uma opção legislativa independentemente das questões de política criminal que levanta. Podemos subscrever ou criticar aquela escolha do legislador, mas não é legítimo ao aplicador do direito, por via interpretativa, restringir a sua aplicação.
A necessidade de pôr termo à conduta maltratante implica, não raras vezes, a aplicação de uma medida de coação necessária, adequada e proporcional à gravidade dos factos e à pena previsivelmente aplicável. Por essa razão será pouco vulgar a aplicação da prisão preventiva como primeira resposta coativa, num caso de violência doméstica, pois usualmente a medida de afastamento será a que melhor cumpre aqueles pressupostos e as exigências cautelares do processo.
A aplicação da medida de prisão preventiva, quando as concretas exigências cautelares endoprocessuais o imponham, foi salvaguardada na revisão, pois, apesar do aumento operado quanto ao limite máximo da pena de prisão mais do que 5 anos, foi introduzida uma exceção para a criminalidade violenta , em que se inclui a violência doméstica, visto tratar-se de conduta que dolosamente se dirige contra a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas e é punível com pena de prisão de máximo igual a 5 anos.
Mesmo sendo fortes os indícios, concretos os perigos e a prisão preventiva admissível, urgente o afastamento da vítima com perigo na demora para a vida daquela, nem o MP nem o Juiz de Instrução podem ordenar a detenção do indiciado para o interrogar e lhe aplicar a medida de coação adequada. Haverá, assim, prevenção, geral e especial, que resista? Controlo da continuação criminosa ou da reincidência do agressor? Proteção de vítimas e testemunhas.
A detenção, enquanto privação da liberdade instrumental e precária, não visa a mera apresentação a um juiz, como parece depreender-se deste novo pressuposto, quando exige para a detenção a previsibilidade de que não se apresentará. Pelo contrário, a detenção visa a apresentação a um juiz, com vista à aplicação de uma medida de coação, que na maioria dos casos tem de ser aplicada com urgência e sem demora, sendo a detenção imediata ou prévia ao conhecimento dessa possibilidade do indiciado o único efetivo garante da sua eficácia cautelar e instrumental à medida de coação.
A partir de quando se conta o prazo para a aplicação das medidas de coação previstas no n.º 1 do artigo 31.º da Lei n.º 112/2009?
"Após a constituição de arguido" equivale, nas hipóteses previstas no n.º 3 do artigo 58.º do CPP, a "após a constituição de arguido validada pela autoridade judiciária competente", sendo, portanto, no momento dessa validação que se inicia a contagem do prazo de 48 horas.
Por último, parece-me que o entendimento que defendo é aquele que melhor acorre às necessidades de ordem prática. O período imediatamente subsequente à constituição do suposto agressor como arguido é, em muitos casos, particularmente crítico sob o ponto de vista da probabilidade de este agredir novamente a vítima como retaliação pela apresentação de denúncia. É este perigo que explica a existência do artigo 31.º, é para acorrer a este perigo que as medidas previstas neste preceito estão orientadas, é por causa deste perigo que se prevê uma intervenção urgente por parte das autoridades judiciárias. Assim, uma de duas: ou aquele perigo não existe e não se ordena a detenção nem se requer a aplicação de medida de coação urgente; ou aquele perigo existe e, sendo assim, tudo aconselha - e a lei, devidamente interpretada , impõe - que se ordene a detenção e que esta se mantenha até ao primeiro interrogatório judicial e subsequente decisão sobre a aplicação de medidas de coação urgentes.
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